segunda-feira, 9 de março de 2009

Vermelho de ódio.

CRUMBLE DE BETERRABA E FUNCHO

Há hábitos que têm sua origem lá na nossa infância. São atitudes diminutas como lavar as mãos antes das refeições ou escovar bem os dentes do fundo que, uma vez repetidas com persistência, acabam desenhando o contorno de uma idade adulta ordeira e, por isso, mais fecunda. O que parece um tanto retrógrado é fato e, apesar de ter alardeado por toda a vida minha filosofia libertária, acredito ser possível harmonizar os conceitos adversários da norma e da liberdade. Agora, se cultivamos esses hábitos por amor aos nossos pais ou se aceitamos a regra imposta pelo medo da repressão, bem, esse fica sendo um problema para acertar noutra hora sobre o divã do analista.

Lá em casa, sempre se comeu de tudo, ou formulando melhor, sempre se comeu tudo o que se encontrava no prato. Liberdade de escolha eu tinha em apenas duas situações: ao visitar a feira de rua, quando, impreterivelmente, optava pela aventura puxa-puxa do pastel de queijo e, em aniversários de amiguinhos, dias em que os brigadeiros ostentavam sua majestade perante quaisquer salgadinhos de festa. Da minha mãe, no entanto, não posso reclamar – a mulher era mesmo a rainha do lar. Muito diferente das donas-de-casa de onde vivo que elegeram o miojo como acompanhamento número um das refeições, minha mãe, ao contrário, parecia ter um certo sistema de alternância dos alimentos levados à mesa. A diversidade era lei. Por conta da nossa situação financeira, minha mãe tinha de se ater aos preços baixos, mas devido à sua criatividade e senso para a perfeita seleção de alimentos, suas refeições eram extremamente nutritivas. Se por um lado, o bifinho de segunda era uma constante, batatas, aipins, inhames, polentas, vagens, macarrões e arrozes eram as variáveis que afastavam o nosso almoço de um cotidiano enfadonho. Toda essa admiração, porém, não me toma o direito de dizer que havia, sim, prato que eu não gostava. E porque vocês já me conhecem, posso dizer com todas as letras: eu odiava.

Ao chegar do trabalho, muita gente tem o costume de abrir a porta da geladeira, assim, sem mais nem menos, apenas para se certificar de que há comida lá dentro. Enquanto trocam de roupa, o cozinheirozinho em seus inconscientes já mistura os ingredientes fotografados pela memória, os quais virarão jantar minutos mais tarde. É triste, mas comigo é diferente. Também abro a geladeira quando chego em casa. Metodicamente. Religiosamente. Porém, enquanto outros buscam o que beliscar lá dentro, eu, trépido e custosamente, abro a geladeira a fim de me assegurar de que não reviverei no presente experiências aterrorizantes do meu tempo de menino.

Era uma segunda-feira. Em algum momento entre as cinco e as seis da tarde, eu estava de volta da escola. Como de hábito, abri a porta da geladeira. Talvez tivesse sobrado um pouco de arroz doce da sobremesa do almoço e, não estando nem a minha mãe nem o meu irmão delator por perto, poderia dar uma colheradinha de nada na borda da tigela, sem deixar vestígios. As papilas tomariam conta, então, de manter viva a lembrança do gosto doce e proibido até o jantar. Mas algo parecia novo com a tigela de ágata herdada da minha avó. Ao levantar a tampa, as gotas condensadas pingaram para dentro da tigela, movimentando o líquido. Um cheiro ácido invadiu minhas narinas e irritou meus olhos. Foi então que vi a sopa vinagrenta de um vermelho reluzente, onde boiava o corpo esquartejado e ensanguentado de um legume que, mais tarde, durante o jantar, viria a conhecer – a beterraba. Durante aquela semana inteira, no almoço e no jantar, aqueles pedaços insuportavelmente azedos de beterraba guarneceram o meu prato. E nada escapou àquela peste vermelha. O sangue ácido embebia as batatas e arrozes, nodoava minha camiseta e, o pior de tudo, desenhava sobre meus lábios a mancha infamante de um bigode vermelho que, para o deleite dos colegas de escola, era reimpressa todos os dias. Imaginava meios de, na surdina da noite, saquear a tigela e despejar o veneno pela privada. Fantasiava sabotar as rodas da charrete do verdureiro, impedindo, assim, que ludibriasse minha mãe com essas idéias e pechinchas. Mas não, pois volta-e-meia o diabo voltava a enfezar minha vida. Tudo isso virou pesadelo. Depois virou trauma, imortalizado num monstro branco e gelado que esperava por mim todos dias na cozinha lá de casa.

Nunca entendi o fascínio que minha mãe tem por esse modo de preparar as beterrabas. Também é difícil de compreender por que arruinava, a meu ver, seus variados pratos com o gosto forte e ácido do vinagre. Talvez desdenhasse de suas qualidades de cozinheira. Talvez lhe faltasse o devido elogio que criança não faz. Ou talvez, por saber possuir não mais que palavras rígidas, desejasse, ao colorir nossos pratos, apenas dizer que nos ama. E o engraçado de tudo isso é que, mesmo adultos, ainda fugimos dos medos da infância. Mas crianças nunca correm para tão longe assim. Hoje, moro num país frio como uma geladeira. E aqui só há um jeito de preparar a beterraba. Com muito, mas muito, muito vinagre mesmo.

Crumble de beterraba e funcho

(adaptado da revista Essen und Trinken, Februar 09)

Ingredientes para 4 a 6 porções:

· 600 g de beterraba

· 1 folha de louro

· Sal

· 2 raízes de funcho (aprox. 400 g)

· 9 colheres de sopa de azeite de oliva

· pimenta do reino

· 4 colheres de vinagre de vinho branco

· raspas de 1 laranja

· 60 g de gengibre cristalizado

· 130 g de farinha de trigo

· 40 g de açúcar

· 50 g de manteiga gelada

Modo de preparo:

1. Cozinhe a beterraba com a folha de louro em água com sal por aprox. 1 hora.

2. Enquanto isso, corte o funcho em tiras de 2 cm. Reserve as folhas verdes para decoração. Em uma frigideira, aqueça 5 colheres de azeite e refogue o funcho por 5 minutos. Retire do fogo, tempere com sal e pimenta e deixe esfriar.

3. Escorra a beterraba e deixe esfriar. Em uma tigela funda, misture 4 colheres de azeite com o vinagre. Descasque a beterraba e corte em fatias de 2 cm. Misture com o vinagrete e tempere com sal e pimenta.

4. Pique bem o gengibre cristalizado. Misture a farinha com o açúcar, as raspas e 1 colher e meia de chá de sal. Corte a manteiga em cubinhos e adicione um a um à mistura de farinha e, com a ponta dos dedos, faça a farofa.

5. Pré-aqueça forno a 180°. Distribua alternadamente a beterraba e o funcho em uma forma refratária. Cubra com a farofa e asse por 30-35 min. ou até dourar. Decore com as folhas do funcho.

DICAS:

*Se você não achar gengibre cristalizado, substitua por laranja cristalizada e misture gengibre em pó na farinha.

**Prepare com antecedência, guarde na geladeira e asse logo antes de servir. Deixe para cobrir com o farofa só na hora de levar para o forno.

***Beterrabas assadas são mais gostosas. Quando faço bolo ou pão, enrolo beterrabas em papel-alumínio e logo que ligo o forno, eu as coloco lá dentro. O bolo assa e só quando o forno estiver frio retiro as beterrabas. Deixo no alumínio até a hora de usar. Elas se conservam por alguns dias na geladeira.

3 comentários:

Juliana Vermelho Martins disse...

Já nem sei que sentimentos me invadem. Tudo ficou misturado: a lembrança de que minha mãe, como a sua, com quatro filhos e trabalhando fora, fazia almoço todos os dias e que eu não consigo fazer isso, portanto, reavivei meu trauma de ser mãe relapsa; o sabor que associo à beterraba, que só fui conhecer jovem em restaurante vegetariano, e que simplesmente amei: adocicado e jamais ácido; por fim, a COR. Essa cor maravilhosa da beterraba, que me acompanha desde a maternidade, e pela qual eu nutro um carinho todo especial...

Acho que, dessa vez, o bem venceu o mal e eu redimo a beterraba de qualquer culpa!

Joyce Galvão disse...

clap clap clap clap!

hahaha... adoro suas cronicas no meio de suas explicacoes no meio de suas receitas e no meio das beterrabas...

clap clap clap!

ei, e estou na espera na iguaria!
té +!

Anônimo disse...

Olá,
meu marido sempre comentou que essa imersao em vinagre era o único jeito conhecido de se fazer salada (nao so de beterraba, mas tambem de outros vegetais) lá na regiao alema do RS quando ele era crianca e ainda hoje em muitos lugares da colonia. Eu adoro beterraba e desconhecia esse modo de preparo dos vegetais até ir visitar a regiao dele. Eu fico extremamente feliz em comer qualquer vegetal, mas devo confessar que odiei o gosto de vinagre prepoderante nos legumes que passam por esse tipo de preparo.