terça-feira, 31 de agosto de 2010

O avatar.

Ao passar os olhos pelas receitas, concluí que o jantar de sábado só sairia na base da acrobacia. E dessa vez, a mesa era para pouca gente. A sofisticação dos pratos, no entanto, indicava que a empreitada não era para qualquer um. A solução foi me dividir em dois.

Enquanto discutia com o verdureiro se me venderia cinco maços de salsinha pelo preço de quatro, já escolhia os vinhos compatíveis em um estabelecimento onde pechincha era termo bronco. Bom foi que ainda ao atravessar a cidade com a sacolada, eu já polia os cristais, treinava o origami dos guardanapos e avisava a dama do apartamento ao lado de que risadas e constantes descargas sonoras invadiriam a madrugada.

Para alguém que sai às compras com o rabisco de uma lista decifrável apenas por escriba egípcio, deixar de comprar ingrediente por não se compreender a grafia é coisa previsível. Às carreiras, por isso, voltei ao supermercado atrás de preciosas amoras no mesmo momento em que na cozinha morna eu já tostava pinhólis além do ponto, chorava sobre cebola picada, aromatizava azeite, livrava salada do último grão de areia e devorava, nervoso, todo um pacote de amendoins confeitados. Mais tarde, com o açúcar caramelizando o estômago, me perguntaria, como se não bastasse comer entre as refeições, por que insisto em lambiscar enquanto cozinho. Acabo sempre comendo por dois, oras.

Se comigo a cozinha já está cheia, nem passa pela cabeça invocar ajuda. Afinal, incumbir tarefas e ainda vigiar alguém que nem conhece o fio das minhas facas me tiraria o prumo. E até todo o afligimento com a pitada de sal a mais, meu deus! Já não foi além da justa medida o tempo gasto para encontrar a perfeita ordem dos post-its na porta do refrigerador? Está claro que qualquer evento entre o convite enviado e o último prato enxuto não tomará mais do meu tempo do que aquele já gasto com o cronograma.

Eta, tanto embaraço num dia só. Já não tendo ocupação o bastante na cozinha, enquanto quebro a cabeça cortando o filé mignon em porções idênticas, ainda torço o nariz para o arranjo de mesa muito além da encomenda. Para toda a baixela e os talheres e mais um buquê agigantado não haveria mesmo espaço. Era cortar um galhinho aqui e outro ali ou realizar um jantar no qual palavras precisariam ser arremessadas de um lado ao outro da mesa. Nada mais de delegar tarefas a terceiros. No futuro, ou sou eu quem arranja as flores ou só confio em mim mesmo.

Os convivas louvaram o jantar. A prova, além do aplauso em palavras, foram o tempo perlongado à mesa, a risada afrouxada pelo vinho bom, o descompromisso com o praxe e a embolação dos guardanapos emporcalhados de parafina. Não há, afinal, etiqueta que resista até altas horas. Os dedos que até então coreografaram os talheres com precisão, acabaram debandados fazendo de brinquedo tudo o que sobrou do festim.

E eu, dividido entre a copa e a cozinha, furcado entre a simpatia do mestre de cerimônias e a responsabilidade do cozinheiro, acabo sem desfrutar nem do gosto das iguarias sequer do vigor excitante que vem após o trabalho bem-feito. Não pude entender as piadas contadas porque a espera por um plim do forno na cozinha me tirava do sério. Não vivi o júbilo de ser o primeiro a provar um molho equilibrado pois os olhos se destorciam até a mesa em busca dos copos já esvaziados. Da próxima vez, ou me tranco na cozinha e não arredo o pé de lá ou chamo os amigos para um papo e peço uma pizza.


6 comentários:

Kelly disse...

É uma alegria e fonte de inspiração abrir o blog, depois de tanto tempo sem passar para fazer uma visita, e ver que cheguei bem na hora certa.
Incrível, e delicioso de ler, como sempre!
Estou alucinada com os sabores, não consigo parar de olhar e reler. Que arte, parabéns!

Bergamo disse...

Moustache!!!
Vc voltou...rsrs
Seja bem vindo (já não sei mais como se escreve essa palavra, mas tá valendo).
Abraços!!!
Bergamo

Jux disse...

Willkommen!!!
Vibrações de vosso retorno alcançaram a pérola do mar do norte!

Joyce Galvão disse...

Bigode,

que saudades... fico me perguntando até hoje se o presente que você comentou que enviou para terras brasileiras não era uma visita sua. Teria sido tão bom...

Você ainda está intitulado no meu coração como meu amigo misterioso cibernético mais querido....

saudades!

beijos

Bigode de chocolade disse...

Kelly, se eu comesse com a mesma frequencia de que ouso escrever, já nao estaria nesse mundo... obrigado por ainda passar por aqui. Prometo (eu disse isso? voce acreditou?) que vou tentar ser mais assiduo em 2011. Obrigado.

Bergamo, sempre digo que benvindo (ou bem vindo) se escreve com vontade. É o único jeito de se alegrar com a chegada de alguém. Seja benvindo voce tambem.

Jux, saudade do mar do norte. Aquelas areias infiniiiitas! Que bom que o vento te trouxe para ca.

Joyce, a caixinha ta ai já ha quase um ano... nada é perecivel. Tenha fé e acredite no velhinho. Quem sabe ainda em 2010. Tem lugar no seu coracao para mim tambem... ainda?

Ju, nao vejo a hora que voce desembarque. Periodo de engorda a vista. Um beijo.

Bigode de chocolade disse...

Kelly, vamos trocar algumas mensagens e resolver o problema da forma de canelles. Eu posso mandar para voce!