domingo, 15 de março de 2009

Noite insone.

BOLO DE MAÇÃ COM CALVADOS

Meia-noite. Eu continuo aqui, andando de um lado para o outro. Tento me livrar do ritmo invariável do pêndulo de oscilantes pensamentos. Ora revejo as atividades do dia transcorrido, catando aqui e ali, desafortunado, os momentos em que fui realmente autor da minha vida. Ora reescrevo a to do list afixada na borda da escrivaninha, sequenciando minhas obrigações do dia seguinte, com a presunçosa esperança de encontrar a mim mesmo num emaranhado de agendas alheias. Alguém sobe as escadas do prédio. Um cão revira a lata do lixo. Por sorte, mínimas distrações como estas salvam meu cérebro negligente de uma agonia sem fim. Mas, não restando nem o julgamento do fracasso de ontem nem a conjectura de alcançar a glória amanhã, como relaxar e encontrar o conforto da cama, se o corpo ainda vacila, arrebatado por tantas e tantas dúvidas?

Durante meu jejum, no início do ano, enfrentei momentos de certa inquietação. Quando o corpo sente a falta da comida, ele reage de formas diferentes, e isso de pessoa para pessoa. Como não tenho dificuldades em jejuar, no meu caso, essas inquietações eram de esfera emocional. Porém, quando voltei a experimentar a comida, meu corpo abandonou a placidez. A violência do primeiro naco mastigado induziu à guerra os sucos e as enzimas dentro de mim. Daqui de fora, ficava difícil saber pelas pistas sonoras quem dava as boas-vindas e quem, depois do longo período de ócio estomacal, tentava expulsar o elemento forasteiro. Nessas horas, eu recorria à meditação. O retorno à comida deveria ser uma aprendizagem sem pressa, uma - como gosto de chamar - reeducação dos sentidos. Uma certa meditação acompanhada de uma maçã madura, aprendida no período de preparação para a abstinência, me conduziu, mordida após mordida, de volta ao cotidiano das refeições. E será assim, com uma maçã madura, descoberta solitária na cesta de frutas, que encontrarei o caminho para cair no sono perdido.

Agora: morda a maçã. Pare. Não do jeito de sempre. Engolir e pronto. Esqueça. Vou fazer um banquete desta maçã. Eu coloco a mesa. Uma toalha, um prato, sobre o qual está a minha maçã. Guardanapo, faca, algumas flores e, para a celebração, uma vela. Eu me sento confortavelmente e observo a maçã. Eu tenho tempo, tempo para a maçã. Nada é mais importante. A maçã é o centro dos meus interesses. Como ela é? Lisa. Redonda. Que cheiro tem? Eu fecho os olhos e a tomo nas mãos. O que percebo quando toco a maçã? Onde estão a árvore e o campo? Eu posso comê-la. Ommm. A maçã espera que eu a coma. Ommm.

Você ouviu? Não ouviu? Eu não estou louco. Estou? Você ouviu um ronco por aqui? Acho... acho que veio do meu estômago. É isso. Eu estou é com fome. É por isso que não consigo dormir. E com uma maçãzinha dessas é que eu não mato a fome mesmo. Quer saber? Isso me tirou o sono de vez. Vamos ver o que temos aqui na geladeira... ovos, manteiga. Já sei. Por que não fazer um bolo delicioso enquanto o sono não chega? Uma receita, eu só preciso de uma receita. Aqui: bolo de maçãs com calvados.

Agora: Corte o bolo. Não, não pare. Não tem problema que ele ainda está quente. Sinto como a faca desliza fácil-fácil. Percebo a manteiga que circula, ainda tenra, encerrada na crosta fumegante. Sinto o éter bêbado da maçã reduzida à essência que me arrebata e me conduz diretamente ao mundo dos sonhos. Sono? Que nada. Hummm. Prato, talher e guardanapo mantêm-se intocáveis sobre a mesa. Rasgo a fatia em pequenos pedaços. O bolo espera que eu o coma. Nada é mais importante. Hummm. Pedacinho após pedacinho, devolvo à fatia do bolo sua completude. Onde estão o meu corpo e o bolo? Com o dedo indicador, recupero as migalhas caídas. Lambo a gordura doce nas pontas dos dedos. Hummm. Agora, eu me sinto cansado. Eu posso dormir. Mas antes... mais uma fatia de bolo? Hummm. Bolo de maçã com calvados
(adaptado do livro Cake e Kuchen, Ilona Chovancova)

Ingredientes para uma forma retangular de 26 cm:
· 180 g de farinha de trigo
· 1 colher de sobremesa de fermento químico
· 3 ovos inteiros
· 150 g de açúcar orgânico
· 150 g de manteiga derretida
· 2 maçãs
· 4 colheres de sopa de calvados (ou rum)
· 1 pitada de sal

Modo de preparo:
1. Pré-aqueça o forno a 180°. Derreta a manteiga e reserve.
2. Descasque as maçãs, retire as sementes e corte em pequenos cubos. Deixe marinando no calvados.
3. Unte e enfarinhe a forma ou cubra com papel-manteiga.
4. Bata os ovos com o açúcar até dobrar de volume ou até virar uma massa clara e lisa.
5. Peneire a farinha junto com o fermento. Alternadamente, adicione a farinha, manteiga e o sal, mexendo cuidadosamente com uma colher de pau ou espátula.
6. Escorra a maçã e reserve o líquido. Acrescente a maçã à mistura e despeje na forma. Asse por aprox. 40 minutos. Derrame o calvados sobre o bolo ainda quente. Espere uns 10 minutos e desenforme.

DICAS:
*Você pode usar peras no lugar da maçãs, nesse caso, não precisa descascar.
**Se usar peras, substitua o calvados por meia colher de sobremesa de anis em pó.

OUTRA RECEITA DE BOLO:
Bolo quatre-quarts

6 comentários:

Joyce Galvão disse...

maçã...já matou minha sede, meu calor, mas nunca minha fome.

Calvados me recorda espanha, no restaurante que trabalhei tudo que levava maça tinha que levar calvados... uma sobremesa feita só de maça....e calvados, pequenas pitadinhas...mas presença marcada e marcante.

adorei o texto!
beijos

Juliana Vermelho Martins disse...

Me pegou num dia em que a sensibilidade já estava alterada. Encostou em algumas feridas.
Fez pensar.
Sei lá...

Bergamo disse...

Moustache,
Vc, eu e a Joyce poderíamos escrever um livro, não? Mais um dos meus sonhos...
Abraços,
Bergamo

Bigode de chocolade disse...

Joyce, calvados é mesmo uma delícia. Mas só consigo cozinhar com ele; beber nem pensar.

Juliana, dedico então uma fatia a você, para melhorar o astral.

Bergamo, se eu tiver mais um sonho, eu transbordo. Eu anoto e coloco na gavetinha da Scarlet O´hara.

Joyce Galvão disse...

um livro a 6 mãos... entrou na minha listinha.

sonhar e transbordar nossa mente de sonhos é gostoso, acorda o coração!

Juliana Vermelho Martins disse...

Me deixaram de fora desse livro! Acho que vou sobreviver a isso... Será? Olha, vamos fazer assim: vocês três cozinham e eu escrevo, que tal?
É, é um convite descarado pra fazer parte da turminha :-)