quinta-feira, 5 de março de 2009

Um banquete para daltônicos.

GELÉIA DE AZEITONAS PRETAS
SOPA DE PIMENTÃO AMARELO COM BOLINHOS COZIDOS DE RICOTA
SORVETE DE TURRÓN DE ALICANTE
Se o clima sombrio lá de fora contradiz todas as previsões do aquecimento global, não há nada melhor do que ligar para alguns amigos famintos e se enfurnar na cozinha, nem que seja apenas para jogar conversa fora e aquecer as costas no calor do forno. Quem já veio aqui, no entanto, sabe que, sendo a cozinha o coração do nosso apartamento, é imanente a paixão que temos pelas panelas e ingredientes. Por isso, fica difícil de escapar do mundo de cores e semitons dos alimentos e da vontade contagiante que temos em embaralhá-los.

Em dias esmaecidos como esses, quando não se distingue o amanhecer do crepúsculo, tem-se a sensação de que tudo está borrado de cinza, de que o mundo que ajudamos a colorir está perdendo a tinta. Tão dependentes estamos dessa paleta cromática que, ao sermos privados de sua companhia por um longo período, perdemos lentamente o pigmento que colore a alegria e nos tornamos desbotados por dentro. Foi o que aconteceu nesse sábado. Parece que uma nuvem cinzenta nos acompanhou da rua até aqui para pairar indissolúvel sobre nossas cabeças, contaminando-nos com uma melancolia sombria e, assim, constrangendo nosso espírito criativo. Foi por conta dessa obscura situação que nosso jantar de sábado se tornou um jantar para daltônicos.
Quem é daltônico possui um certo distúrbio em sua percepção visual. Em um dos muitos casos, não se distingue o vermelho do verde. Pense num spaghetti alla carbonara. No molho dourado de gemas e parmesão que envolve a massa. Nos pedacinhos encarnados da pancetta que, em ritmo invisível, escorrem para o fundo do prato. E na cebolinha verde salpicada, aviltando o clássico italiano, num gesto dissimulado em defesa de sua saúde. Pois bem, o que para a maioria se assemelha a um calidoscópio colorido, para um daltônico, ao contrário, é um puzzle de peças amarelecidas que se distinguem umas das outras através da forma e da sombra. Para mim, uma situação tão inimaginável como uma toxina que induziria à anemia. Por outro lado, acredito que os daltônicos acabem desenvolvendo o pendor de reconhecer o mundo através dos outros sentidos. Talvez – e começo, aí, a invejar – , por não estarem acostumados a comer com os olhos, eles percebam mais nuances no simples carbonara de um dia de semana, do que no banquete que, apesar de todas as minhas habilidades sensoriais, não consegui produzir no sábado passado.

O cozinheiro não está ileso de cometer erros. O que ele não pode é subjugar-se às tensões de um ambiente carregado. No sábado à noite, por conta do ânimo esmorecido, violei o preceito que considerava religioso - partilhar meu amor através da comida que faço. Bem que a geléia de azeitonas pretas traria mais dignidade ao petisco de boas-vindas se acompanhasse o contraste púrpuro da confettura di radicchio, a surpresa de uns dias atrás. Se, ao modelar os bolinhos de ricota, eu tivesse o capricho de reservar apenas quatro folhas de manjericão para a decoração e se salpicasse a sopa de pimentões amarelos com uma emulsão rubra de azeite e pimenta malagueta, alcançaria já no prato de entrada o ápice do jantar. Se deixássemos vazar os sentimentos desse nosso relacionamento mudo de agora e planejássemos mutuamente a disposição dos ingredientes, teríamos levado um outro prato principal à mesa. Mas não, o filé de peixe se refugiou sob a montanha amarelo-pálida do purê de batatas, assim como, quietinho, alguém finge dormir quando o companheiro entra no quarto. Por fim, o sumo quente e pontilhado de um figo gratinado teria sido o apelo sensual ideal para livrar o sorvete de turrón da sua feição tão enfadonha. Foi mesmo uma sorte que uma bola não acabou na testa de algum convidado, pois se não fosse a discussão acalorada sobre as mudanças climáticas, alguém, certamente, dormiria sobre o prato.

Toda essa tragédia monocromática não só afetou a beleza dos pratos como também, e incontestavelmente, influenciou o sabor do que foi servido. Embora nenhum daltônico estivesse sentado à nossa mesa, é possível imaginar que, por não se ater ao que foi apresentado à sua vista, tivesse a chance de sentir o verdadeiro sabor da comida antes de qualquer um dali. E por não perder tempo com questões estéticas para as quais não teria respostas, é que por primeiro perguntaria onde teria parado a alma daquele jantar.

8 comentários:

Juliana Vermelho Martins disse...

Quando estou cozinhando com raiva, ou irritada, ou de saco cheio, sei que a comida vai ficar horrível. Em vão tento pensar "se eu não colocar AMOR no que estou fazendo, não vai ficar bom". É inútil. Melhor ligar para a pizzaria.

É muita responsabilidade nas costas de quem pilota o fogão, mas é real. Quando estamos "cinza" por dentro, a comida sairá cinza. Se temos vida correndo nas veias, ela se manifestará até mesmo num miojo.

Mas os jantares cinza são necessários. Eles precisam existir ao lado dos jantares multicoloridos, para que estes tenham todo o seu valor...

Bergamo disse...

Moustache,
Não sou daltônico, e nem sempre tenho todos os meus sentidos intensificados, mas, sim!!...vejo beleza no seu jantar monocromático. A inspiração pode vir de uma única cor, de uma única forma. Quem sabe essa não seja a chave para abrirmos outros caminhos e sensações?
Abraços de um fã (curto muito o que escreve),
Bergamo

Sarah disse...

Olaaaa
Achei seu blog e já te digo que adorei!PArabens!
Bjos, Sarinha

Joyce Galvão disse...

tragédia monocromatica?
os pratos mais aclamados da europa tem sido monocromáticos sabia? adoro!

beijosss

Tânia N. disse...

Amamos o post!Lindo e extremamente poético!

Juliana Lobo disse...

Preciso dizer, seu blog é simplesmente fantástico! Amor ä primeira vista!

Bergamo disse...

Moustache,
A sua idéia foi extraordinária. Muito mais que chique...realmente muito mais...
Abraços,
Bergamo

Bigode de chocolade disse...

Juliana, bom foi reconhecer as emoções negativas através do jantar, antes eu não as reconheci em mim ou nos meus convidados. Se não fosse assim poderia ter virado indigestão.

Bergamo, você tem razão. Muitas vezes até experimentar a ausência do gosto também nos abre portas a outras sensações. Obrigado.

Joyce, vamos com calma. Acho que vou ter de mudar a lâmpada da sala de jantar. Beijo.

Obrigado a todos que pintaram por aqui!!!