quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Férias 2: A redenção.

BOLO KOUGLOF8° dia. O céu caiu na noite passada. Algum anjo, contudo, resguardou nossa cama das goteiras que rumurejavam por toda a casa até alta madrugada. O perigo vinha de baixo. As ruas da pequena Elne enfrentaram um cataclismo aquático – furor que levaria um templário de outrora a validar ou até infirmar o seu temor a Deus. Mas a água não chegou aqui em cima. E mesmo se fosse o caso, ainda levaria um bom tempo; daí nossas férias já teriam acabado.
A chuva lavou toda aquela caca imunda, o que nos animou a desbravar a pé os arredores da cidade. Era dia de feira-livre. Eu poderia ficar horas descrevendo minha experiência sinestésica na terra dos gourmets e parfumeurs, porém me encontro num estado de tremenda estupefação. Estava embevecido pela abundância das cores, aromas, texturas e sabores com que me deparei nas barracas da rua. Isso tudo caiu do céu com a chuva? Não vai dar mesmo para relatar tudo em minúcias porque a imagem singular de um tomate maduro perfurou minha retina, rompeu o córtex cerebral e se cauterizou para sempre no subconsciente de minhas lembranças mais notáveis. Eu fui, sim, traumatizado por um tomate maduro e, acredite ou não, ele está ainda aqui, tridimensionado, entre mim e a folha de papel virtual.
Por piada, fui fotografado. Mais tarde, penalizei-me com a perplexidade daquele triste homem que, estatuado com a vermelhidão do tomate maduro, bloqueava o caminho dos turistas. Devorei o tomate ali mesmo, sem modos, limpando os beiços com as costas da mão. Então, eu soube que nada seria como antes, nenhum gosto, nenhuma textura. A experiência do tomate relativizara todo meu entendimento do mundo sensorial até o momento. Os parâmetros haviam mudado. Dali para frente seria necessário reeducar os sentidos. E me refiro a todos os cinco sentidos, é claro, pois é o tomate vermelho em frente ao meu nariz que está ditando o texto para mim.
P.S. Não vou pensar nisso agora, mas sei que todo o encantamento vai dar lugar à fúria assim que me deparar com a montanha de tomates verdes do supermercado lá de casa. Por que os tomates que compramos não são assim maduros e encarnados como os do marché français. Por que estão tentando enfiar na nossa cabeça que tomate verde é tomate maduro? Por quê? Peça a uma criança para que desenhe um tomate. Sem titubear, ela vai pegar a canetinha vermelha. Ainda que seu sabor pareça estar definitivamente perdido para nós, a cor do tomate maduro sobrevive no nosso inconsciente coletivo. E ela é vermelha. Vermelha!
13° dia. Salut, comment ça va? Hoje não dá para escrever muito. Qualquer coisa que escreva vai parecer devaneio etílico. Por isso, vou tentar ser rápido e objetivo. Tentar, pois o vinho subiu à cabeça já há um tempinho. E que vinho, meu deus. Sabe que escalei de quatro as escadas até o quarto? Um medo de cair! Era assim ou de bunda, degrau por degrau.
Estou saciado e bêbado. Comemos como deuses. Bebemos desvairadamente. Foi bom ter alugado uma choça com cozinha pois, mesmo dividindo espaço com mosquitos patriotas que assubiam la marseillaise durante a noite, acabamos economizando o dinheiro para o jantar de despedida. O que comemos, eu já esqueci. Os sabores du terroir, contudo, vão me acompanhar até o julgamento final.
Você me conhece e sabe que fico estabanado quando me alegro um pouco. O último copo virou sobre a mesa, manchando a toalha engomada. O vinho escorreu e pingou nos meus pés. Foi aí que eu percebi que estava de havaianas. Há treze dias não visto um calçado sequer, você imagina? O dia de hoje vai para o compêndio de eventos hilários da família – o dia em que fui de chinelo de dedo a um restaurante francês. E quer saber por que não percebi isso antes? É que eu já estava feliz antes de entrar lá. Vive la France.
14° dia. Chegamos em casa. Foi atravessar a porta para já avistar o relógio de pulso que larguei sobre a mesinha antes de viajarmos. O tempo voltou a correr. Mas retornei rejuvenescido e um tanto mais sensato. Na última visita à uma loja de quinquilharias, encontrei uma forma de cerâmica de kouglof. Acabei comprando e, ao abandonar a loja, tive uma estranha sensação de alívio, como se, há muito, procurasse pela forma.
Já havia visto uma dessas em algum mercado de pulgas por aqui. Ficava imaginando a avozinha morta que deixara para trás todo um arsenal de cozinha ou até parte de um enxoval intato, já amarelecido pelos anos. Nunca me encorajei a comprar uma forma usada. Se não são os herdeiros, aqueles que continuarão a contar os domingos da vida com bolos em família, ninguém mais será. Hoje tudo é imediato. Forma de silicone não se passa para a próxima geração. Talvez, e ainda, receitas.

Como não terei herdeiros, é melhor parar logo de ser nostálgico. Comprei a forma para coroar a viagem à França. Ela vai envelhecer comigo. Reviveremos a cada fornada a alma alegre dos dias passados por lá. Pode ser que eu viva muito e e ainda tenha histórias para contar. Mas pode ser também que a forma se quebre e meus interesses descambem e resvalem em outras direções. É, tudo pode ser. Você tem tempo amanhã? Tá a fim de ver outras fotos da viagem? Eu asso um bolo.

FÉRIAS 1: A CULPA.

5 comentários:

Joyce Galvão disse...

posso ir então ver as fotos? adoro bolo de banana!

E se quiser, pode deixar sua forma comigo que eu guardo com carinho! rs

Bergamo disse...

RECADO PARA A JOYCE EM BLOG ALHEIO: acho que a forma combinaria mais com os meus pratos de bolo...mas eu posso emprestá-la para a menina Gastronómica.
Abraços,
Marcelo

Joyce Galvão disse...

Eiiii, não vale! Eu pedi primeiro!


Mesmo porque o Bigode vai abrir a padaria comigo! rs

beijos aos dois

Bigode de chocolade disse...

Gente, pára com isso! Daqui a pouco eu jogo tudo para o alto e aí a gente vai ter que dividir os caquinhos... da forma ehehe!

Juliana Vermelho Martins disse...

1 - Concordo plenamente! A experiência com um (dos vários tipos de) tomate que existem na França no verão é realmente uma epifania. Não dá pra ser a mesma pessoa depois disso. E não há papel nem tela virtual que consiga transmitir o sabor, o que é ÓTIMO! A gente é obrigado a voltar pra França!

2 - Como é que monsieur, le maître te deixou entrar no restaurante de havaianas?! Por muito menos fomos expulsos de um restô... Você enfeitiçou o pobre com sua felicidade!

3 - Sinto muito, mas vocês tem herdeiros, sim! Eu e minhas próprias crias, não se esqueça! Logo, ao pessoal aí de cima (ou de baixo, não sei a ordem dos comentários) eu digo: sinto muito... Mas minha filha até já chama o Bigode de "Bolo"!

(Que bom que vc voltou a escrever... Compensa meu mutismo e assim vamos nos alternando!)