quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O ovo é a medida de todas as coisas.

RECEITA: BOLO QUATRO QUARTOS (GÂTEAU QUATRE-QUARTS)

Testemunhas já declararam ter me visto flutuando sobre o chão da cozinha. Nessas horas o mundo à volta se dissipa em uma neblina de éter, tão absorto que me encontro fundindo ingredientes uns aos outros. Mesmo assim gostaria de compartilhar com os amigos minha visão desse espetáculo furta-cor. É quando um alimento vaza para dentro do outro e tem sua aura original alterada. Com meu corpo residido pela alegria e com um olhar de pura contemplação – como afirmam os que espreitam e talvez invejem minhas múltiplas mãos de Shiva seguem acrescentando, misturando e emulsionando na busca da dádiva planejada. O manjar que alimenta meus amigos é, por vezes, deleite para suas almas e, nesse caso, é possível que compartilhem resquícios da minha transcendente aventura.

Agora, de volta à Terra. Infelizmente, a experiência acima só se dá quando receita e ingredientes sofisticados se encontram sobre a mesa. Não posso esquecer de mencionar a platéia, é claro, sempre composta por amigos selecionadíssimos que não sabem ou não têm tempo para cozinhar; sem essa platéia meu teatro transcendental não seria possível nem eu, tampouco, teria oportunidade para camuflar meu ego com um chapéu de mestre-cuca. Nesse momento raro de pés plantados no chão, encontro-me diante de apenas quatro ingredientes básicos: ovos, manteiga, açúcar e trigo. E se não há motivo para contemplação nem o mínimo indício de que a platéia vai lotar, não me resta outra alternativa se não fundir a cuca com devaneios e caraminholas.

A receita que tenho em mãos é do bolo quatre-quarts, talvez o bolo mais simples que exista. O bolo possui variantes em diversos países mas seu, digamos, caráter igualitário parece ter origem francesa. O princípio é que farinha, manteiga e açúcar sejam medidos a partir do peso dos ovos reservados à receita. Considerando, portanto, que os ovos que uso têm 50 g, se o bolo levar cinco ovos, serão 250 g de ovos no total. Isto quer dizer que pela regra cada um dos outros ingredientes deverá pesar 250 g. Segundo o meu livro, o bolo de um quilo vai dar para uma forma de 30 cm de comprimento e 10 cm de largura. E aí mora o problema: nós somos dois em casa. E um bolão desses vai secar antes de ser totalmente devorado. Que eu posso fazer um bolo com três ou quatro ovos eu já sei e já ficou claro para você. Mas a questiúncula que cutuca aqui é: qual o tamanho da forma que precisarei se quebrar menos ovos? Não me diga que você nunca se deparou com um problema desses.


Vou tentar voltar às aulas de matemática básica e brincar de calcular, mas àquelas aulas em que ainda era permitido usar os dedos e objetos para contar. Coloco cinco ovos em uma forma de 30 cm e avalio não só o volume que ocupam como também o espaço que sobra entre eles. Imagino que a cada ovo, fundidos, estão os outros ingredientes. Sei que eles são estáveis em volume. A resposta veio com uma imagem. Ao usar uma forma de outro tamanho, o espaço entre ovos deveria permanecer o mesmo. Cada segmento composto de quatro ingredientes sempre ocuparia o mesmo volume. Divido a forma de 30 cm em seções que correspondem ao número de ovos e obtenho a seguinte sequência numérica: 6, 12, 18, 24 e 30.


Eu sei, eu sei, não foi bem a descoberta do segmento áureo, e alguém, antes de mim, já tinha concluído que a receita para a forma de 30 cm levaria cinco ovos. Mas fiquei bem feliz ao constatar que as outras formas no armário correspondiam exatamente às medidas de 18 e 24 cm. E mesmo se não, a proximidade dos comprimentos me encorajaria a fazer um bolo menor, sem o temor de que a massa transbordasse da forma ou sumisse no fundo, afinal, suflês e crepes têm receitas e modos de preparo a serem respeitados. Meu quatre-quarts, portanto, terá quatro ovos e será assado em uma forma de 24 cm. Ao final dessa aventura que sem dúvida transcendeu o meu modo de encarar receitas e formas, me sinto encorajado a enfrentar problemas parecidos no futuro. Talvez tenha que recorrer a livros já empoeirados com complicados capítulos de geometria ou, quem sabe, apelar aos deuses.

Bolo quatro quartos (Gâteau quatre-quarts)

Ingredientes para uma forma retangular de aproximadamente 24 cm de comprimento:

· 4 ovos caipiras separados (tamanho médio, 50 g)

· 200 g de farinha de trigo peneirada

· 200 g de manteiga salgada

· 200 g de açúcar orgânico

Você pode dar sabor ao bolo acrescentando raspas de laranja ou limão, ou temperos como anis ou baunilha. Eu prefiro sentir o sabor da manteiga e dos ovos, por isso, compro sempre produtos de qualidade. Acredito que a qualidade dos sabores nesse caso supera a simplicidade do bolo.

Existem várias maneiras de preparar esse bolo; foi assim que fiz:

1. Unte e enfarinhe a forma ou forre com papel manteiga.

2. Pré-aqueça o forno a 180°.

3. Derreta a manteiga e deixe esfriar.

4. Bata os ovos com o açúcar até dobrar de volume ou até que se dissolva completamente.

5. Lentamente acrescente a manteiga e misture delicadamente com uma espátula ou colher de pau.

6. Acrescente a farinha, misture e despeje na forma. Leve para assar por 40-45 minutos.

DICA: Depois de 20 minutos no forno, o bolo vai formar uma película na superfície. Com uma faca afiada e untada, faça um corte longitudinal de um extremo ao outro. Isso fará com que a massa do interior transborde uniformemente, formando a típica fenda.

Variante 1: Bata as claras com um terço do açúcar. Bata a manteiga com o restante do açúcar. Acrescente as gemas uma a uma. Misture as claras batidas. Acrescente a farinha.

Variante 2. Bata a manteira com o açúcar. Acrescente os ovos um a um. Adicione as farinha em três porções.

Um comentário:

Juliana Vermelho Martins disse...

Estou impressionada com essa forma matemática de prever o tamanho de um bolo! Eu sempre usava o método ultra científico do "olhômetro" com os acertos incertos e as catástrofes prováveis dessa maneira de agir. Na próxima vou tentar a sua fórmula...

Coincidência... Essa semana fiz quatre quarts aqui em casa. É o único bolo que agrada a todos desta família, sem exceção. Unanimidade total no meu mundinho, mas também entre os convidados que por acaso aparecerem.

Sofro do mesmo mal transcendental que você: quanto mais elaborada a receita e quanto maior a platéia, maior a altura a que chego levitando na cozinha. Mas vou confessar que há três coisas que me fazem levitar por mim mesma, pelo prazer antecipado de degustá-las, muitas vezes absolutamente sozinha: madeleines, crêpes e quatre quarts. Se a perfeição está na simplicidade, para mim esses 3 pratos encarnam essa simplicidade. E, por consequência, também a perfeição.

Não conhecia essa da fenda... Mas não me arrisco a tentar! Isso é só para profissionais.

PS.: a palavra de hoje é "croust". Engraçadas coincidências...