domingo, 15 de fevereiro de 2009

Indiana Jones e o radicchio.

RECEITA: GELEIA DE RADICCHIO

Sempre fui fã de carteirinha do Indiana Jones. Apesar da decepção com o último episódio, Indi permece intacto no pódio dos herois daquele franco garoto de periferia que eu era. E Mister Jones não estava sozinho lá em cima, não. Dividia espaço com a Raquel Accioli (sim, aquela da novela Vale Tudo), com a Maria José, minha, então, professora de português e com outros tantos seres humanos e fictícios que produziram fortes impressões no meu espírito em formação. Não me envergonho dessas escolhas, nem há motivo para isso se os álibis me absolvem de qualquer julgamento: a televisão estava sempre ligada, a biblioteca, sempre fechada e o cinema era o divertimento mais em conta para alguém que, tendo nascido com dois pés esquerdos, não via razão em gastar o dinheirinho com uma calça branca só para ir à discoteca com os amigos.
Quem assistiu ao A última cruzada vai entender bem. Logo no final, depois de incontáveis percauços, Indi precisa passar por provações que testariam suas sólidas convicções de professor e arqueólogo – uma delas era uma prova de fé. O local em que ele se encontra e a entrada da câmara, na qual há séculos é guardado o Graal, são separados por um precipício. Alcançar o outro lado requereria forças sobre-humanas. Pela urgência em salvar a vida do pai e por ter percebido que até ali tudo parecia divinamente iluminado, Indi leva a mão ao coração, acredita no impossível e ergue a perna para dar o primeiro passo - mais eu não conto; pode ser que você não tenha visto o filme. O que me comove até hoje é ter entendido que a atitude de Indi em acreditar poder caminhar sobre o precipício não foi um impulso procedente do seu desespero, pois sei que há diferença entre a loucura da imprudência em pisar no vazio e a ousadia de permitir-se acreditar ser possível.

Há duas semanas, a Ana Elisa, do delicioso blog La Cucinetta, postou mais uma de suas experiências gastronômicas. No texto, nostálgico e fluente, ela comenta de um episódio vivenciado em Veneza, quando deparou com uma inusitada geleia de radicchio. “De radicchio? Mas radicchio é amargo?” Ana provou a geleia com queijos fortes e nos diz que, além de deliciosa, era diferente de tudo o que é geleia que já provara. Não teve, então, a sorte de comprar um vidro e, agora, divide conosco a frustração de nunca mais ter comido daquela iguaria italiana. Para mim fica claro que provar a geleia de folhas amargas foi um marco para a história culinária que desenvolveria futuramente na cozinhazinha que nos expõe todas as semanas. Ana não visitou delicatéssens à procura de um vidrinho de confettura di radicchio – fantasio – isso seria a loucura. Ter apreciado ou não a geleia não é tão importante. Não tão quanto ter registrado as nuances da combinação dos sabores. Talvez, inconscientemente, através da sua alquimia e com os ingredientes ao seu alcance, Ana tenha procurado reconstruir, aqui na sua cozinha, a experiência sensorial vivida naquela sua noite em Veneza. E isso é a ousadia.
Alcançar o outro lado do precipício não é fácil. E talvez não seja para qualquer um. Cozinhar não é arte nem é tão difícil quanto parece. A escola dos sabores se situa em algum lugar entre a fragilidade de um biscoito de polvilho e o corpo do vinho envelhecido. A história da culinária é escrita tanto pelo guia Michelin quanto pela dona-de-casa que sonha com um restaurante por quilo. Loucura é situar-se apenas em um dos dois extremos. Mas se você tem apenas fome, nunca vai apreciar a comida.
Encontro-me em um tempo de mudanças. As recordações têm me ajudado a reestruturar a minha vida. Raquel Accioli (sim, sim aquela, a da novela das oito) me emocionou quando misturou maionese com atum de latinha, arregaçou as mangas e saiu vendendo sanduiche na praia. Mais tarde, ela chegou a ter uma fábrica de maionese, lembram? E a Maria José, incrível professora, me disse algo a que me neguei durante mais de 20 anos, que só se aprende a escrever, escrevendo. E eu não vou cuspir no meu passado. Só cuspo comida ruim.

Geleia de radicchio
descoberta em uma sala de bate-papo
Ingredientes:
· 300 g de radicchio processado ou picado bem fino
· 50 g de água
· 1 colher de sopa de vinagre branco
· 150 g de açúcar
· Suco de meio limão
· 50 g de licor de laranja
· 30 g de amaretti esfarelados
Modo de preparar:
1. Cozinhe o radicchio com a água e o vinagre em fogo baixo por 8 minutos.
2. Adicione o açúcar e o suco de limão e cozinhe em fogo médio por 20 minutos.
3. Adicione o licor e cozinhe por mais 15 minutos ou até atingir a consistência desejada.
4. Tire do fogo e acrescente os amaretti.
Dicas: Se você bater o radicchio com a água e o vinagre no liquidificador, vai obter uma geléia mais fina. O licor e a água foram pesados - a gastronomia profissional geralmente pesa os líquidos para obter medidas mais precisas; aqui 50 g de licor são praticamente 50 ml. A geléia se conserva várias semanas no refrigerador.

3 comentários:

Juliana Vermelho Martins disse...

Pode até ser que a escrita seja com dor. Mas para azar das mães, os partos também são doloridíssimos (ou eram, hoje tudo mudou), e a única coisa que percebemos é a beleza dos filhos.

A Maria José tinha razão! Que bom que você está usando seus conselhos. (Parênteses nada a ver: será que todas as Marias Josés sempre têm razão?)

Ah! E geleia na nova ortografia foi genial! Só percebi na segunda ocorrência da palavra. Sinal que meu cérebro já está quase acostumando...

Tenho minhas experiências na vida gustativas. E penso que dar o primeiro passo nesse abismo é entrar num caminho sem volta. Como Fausto. É sair da inocência da ignorância para a plenitude do conhecimento. Com toda a dor que vem junto com ele.

Mas isso é conversa para outro dia...

Ana Elisa Granziera disse...

Eugenio!
Lindo texto!! Só não me disse o mais importante... hehehe... GOSTOU DA GELEIA? ;)

Bjos!

Bigode de chocolade disse...

Juliana,
e é provar dessa geleia para se entender tudo. Melhor ainda se o queijo for um pecorino. Obrigado.

Ana,
que bom que passou por aqui de novo. A geleia é uma delícia sim. Já entrou para os clássicos da minha cozinha. Meu companheiro adorou e uma amiga que convidamos levou um restinhozinho para casa. Mas da próxima vez pico o radicchio mais fino e encurto o cozimento para obter algo mais delicado. Obrigado pela visita e pelo impulso.